Perdoem-me os aficionados da tauromaquia mas não encontro melhor comparação com a dialética dos incêndios em Portugal. Os fogos florestais são, há décadas, a face negra do nosso verão: sol, praia, férias, festas e romarias sem destruição pelas chamas começa a ser muito parecido com ir a Roma e não ver o Papa.
No momento em que escrevo, a tourada mor está ao rubro em Vila de Rei onde 20 feridos despertam as memórias mais esquecidas para o drama que fustigou o país em 2017. Os touros (frentes de incêndio) consomem hectares de matagais e, em face do muito calor e da reduzida humidade, a esperança maior reside nos toureiros de eleição (meios aéreos).
O povo assiste ao espetáculo in loco ou embalado pelas imagens das televisões que captam ao segundo cada nova ignição ou projeção: uns batem palmas ao esforço dos bravos forcados (bombeiros), outros rogam pragas pela sua ausência nas povoações mais ameaçadas, onde esperavam vê-los pegar o boi pelos cornos.
E é assim desde que me lembro: investimos milhões no combate e tostões na prevenção; impomos medidas a partir do Terreiro do Paço e não escutamos as populações locais; a eucaliptização avança e a praga das acácias toma conta do espaço agro-florestal; as espécies autóctones vão rareando e as exóticas medrando; a limpeza dos terrenos circunscreve-se ao perímetro urbano e o resto entregue ao desleixo; as faixas de contenção resistem a sair do papel, exceto aquelas definidas pelos postes da EDP; promovemos debates e discutimos políticas mas, a cada verão que passa, a floresta continua a arder impiedosamente.
Em suma: a floresta arde a um ritmo alucinante dando razão a Armando Vara quando um dia afirmou “deixa arder que é mato”. A cada nova “época de incêndios” – triste designação que parece traduzir a inevitabilidade de um fenómeno, 90 por cento ou mais, da inteira responsabilidade humana – o país fica mais pobre, mais vulnerável, mais próximo da desertificação, com danos consideráveis no tecido económico e turístico.
Esta tourada, contudo, é do interesse de uns quantos mafiosos que usam e abusam do bem público para ganhar milhões: cada marrada – leia-se grande incêndio – é como ganhar o euromilhões! Um negócio ilícito, uma ganância sem limites, onde vários comem da mesma gamela.
Só um pacto de regime poderá alterar a situação. Para quando a coragem política e social de dar esse passo?