Com a revolução de Abril Portugal sofreu um forte abanão nas suas várias estruturas. Passou-se de uma era de décadas de ditadura para o entusiasmo próprio, e algumas vezes excessivo, da liberdade tão desejada. As estruturas autárquicas receberam total transformação. Nas freguesias foram criados órgãos de gestão em substituição das anteriores Juntas de Freguesia e nos diferentes lugares escolhidas pelo povo as denominadas Comissões de Moradores.
Foi assim também nesta Freguesia de Ceira e no lugar do Sobral fui um dos cinco elementos indigitados para a comissão local. A Junta de Freguesia promoveu a ocupação da “Casa da Lameira” em tempos deixada em testamento à Fundação Bissaya Barreto e entregou a sua gestão ao critério da Comissão de Moradores.
Foi então que o Joaquim Basílio me propôs a criação de um grupo de teatro local numa segunda edição do que anos antes havíamos vivido na Casa do Povo. Obtida a concordância da Comissão de Moradores lançamos mãos à obra. Afixados convites para uma reunião, a comparência dos interessados excedeu as expectativas, uns desejosos de conhecer um tema até ali ignorado, outros numa situação de meros espetadores.
Juntaram-se pessoas de todas as idades, de ambos os sexos, e com o mesmo espírito vivido anos antes encetou-se um trabalho que produziu frutos.
Num edifício erguido com um mínimo de condições foi logo implantado um espaço destinado a palco com dois anexos camarins. Nas noites de frio, que eram muitas, fazia-se uma fogueira no exterior onde se iam aquecendo os participantes que o contra regra chamava só no momento em que a sua intervenção no ensaio era necessária.
Com humildade, espírito de sacrifício, dedicação constante, igualdade de tratamento foi possível durante anos estrear anualmente um novo trabalho, com a população local a viver os sucessivos êxitos alcançados, quer no Sobral propriamente dito quer nas muitas e muitas dezenas de espetáculos realizados por toda a região, participações em que a Delegação do Inatel teve sempre papel relevante. Representados sempre os melhores autores, fez-se teatro avançado para a época, suprimindo-se com algum engenho os hoje em dia tão vulgares meios tecnológicos e fazendo-se representações em que os próprios assistentes tinham participação. Não se esqueceu a declamação que aqui também teve o seu espaço à semelhança do que acontecera anos antes em Ceira. Foi feito um trabalho destinado a mais jovens que permitiu a sua integração futura no grupo principal. Mais de sessenta pessoas fizeram parte do grupo e, por certo, que tal como eu hoje recordarão, até com emoção talvez, esses anos tão felizes. Entre as seis dezenas de elementos que constituíram na época quase uma segunda família recordo com muita saudade a Isabel Vilela, o Joaquim Basílio, o António Priva, o Augusto Veríssimo, o Eduardo Rocha. Descansem em paz.
No final dos anos 80 a Junta de Freguesia de Ceira, para além dos seus órgãos oficiais, tinha constituído comissões de apoio às suas várias áreas de intervenção. Fiz parte durante alguns anos da comissão de cultura e foi nessa qualidade que a Junta de Freguesia me solicitou intervenção junto do CCDS de São Frutuoso para ali se iniciar uma atividade ligada ao teatro.
Partindo para um meio pouco conhecido fui acompanhado nos primeiros contactos por pessoas que comigo tinham feito equipe anteriormente. Iniciou-se, sempre dentro dos moldes anteriores, uma fase de trabalho que culminou com a estreia do grupo em 24.10.92. Também ali se deu lugar à declamação. Também ali houve um grupo de jovens que transitaram para o grupo principal. Também ali se viveram momentos muito felizes a par dos sempre inevitáveis períodos de mais dificuldades. Só o cumprimento de obrigações que considero sagradas me fez deixar este grupo, no qual os grandes autores foram sempre privilegiados, onde a igualdade de tratamento, a humildade e o companheirismo estiveram sempre presentes.
Fátima Reis, uma saudade. Manuel Quatorze um exemplo singular ainda presente.
Voltei a viver hoje. Graças a “O Despertar” e ao Teatro. Recordações que não posso acabar ainda aqui.