José António de Moura Távora é um exemplo de que uma paixão pode marcar toda uma vida, abrindo continuamente novos caminhos que, ao longo das décadas, vão conduzindo a novas e desafiadoras descobertas. Com um trabalho artesanal singular, que homenageia a cidade de Coimbra e o seu património, está longe de dar por concluída a sua obra, continuando a fazer a vontade à mente e também às mãos, ambas ansiosas por continuarem a criar.
A paixão pela arte e pelo ato de criar tem acompanhado Moura Távora desde que era um miúdo. Os comboios na linha da Lousã, que desbravam caminhos e deixavam para trás o casario, foram a “boleia” de que precisava para explorar um mundo novo, que começou a percorrer quanto tinha apenas oito anos e que nunca deixou de o inspirar e motivar.
Hoje, aos 62 anos e com 32 peças criadas, 14 sobre espaços e monumentos emblemáticos da cidade de Coimbra e as restantes sobre temas variados, continua a dedicar muito do seu tempo à arte, uma “paixão” que lhe alimenta a mente e ocupa grande parte dos dias, proporcionando-lhe ao mesmo tempo um espaço de criatividade mas também de reflexão, “uma espécie de fuga” onde busca, tantas vezes, “resposta aos problemas que esperam resolução”.
Moura Távora recorda que o seu comboio elétrico sempre o fascinou. Faltava-lhe, contudo, o cenário que apreciava diariamente, quando os comboios chiavam na linha da Lousã, enquanto passavam por entre os prédios. Faltavam-lhe as casas para dar mais realidade ao presente que tinha recebido da sua mãe, pessoa que acabaria por ser, ao longo da sua vida, a sua “principal crítica”. Com apenas oito anos, comprou na papelaria meia dúzia de casas de papel, daquelas que se recortavam e montavam, e começou a fazer a sua própria cidade.
“E foi assim que comecei. Faço construções desde os oito anos. A partir de então apenas fui aperfeiçoando a técnica e mudando de materiais. Passei pela madeira, pelo plástico e fui sempre avançando”, recorda. A primeira grande peça surgiu quando tinha já perto de 37 anos e quando descobriu a terracota, um material que continua a utilizar até hoje, juntamente com a madeira.
A Igreja de Santiago, na Baixa, acabou, então, por abrir a coleção que viria a construir sobre Coimbra. Moura Távora sempre procurou conhecer bem a sua cidade e a sua história. Admite que Coimbra o apaixona e foi precisamente esse amor que serviu de “pontapé de partida” para aquela que seria uma das suas principais coleções, onde continua a trabalhar, tendo grandes projetos em preparação.
“Um dia estava na Baixa, junto à travessa que dá para o Arco de Almedina, onde ouvi um guia turístico dizer a um grupo que ali estava uma das milhares de portas da cidade de Coimbra. Como sabemos apenas há três portas mas deixei-o falar e no final abordei-o. Disse-me que ele é que era o guia, que sabia de história e não eu”, recorda. Na sequência deste episódio e de uma conserva com alguém que passava, que dava conta das “tantas coisas lindas” que havia em Coimbra, surgiu o mote para começar.
Depois da Igreja de Santiago seguiram-se outras obras, réplicas de monumentos emblemáticos de Coimbra como a Igreja de Santo António dos Olivais, o Arco de Almedina, a Torre de Almedina, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, a Universidade, o Pátio das Escolas e algumas pontes.
O recomeço apesar da dor
O falecimento da mãe fez com que tivesse parado cerca de um ano e meio. Feito o “luto” e até em homenagem à sua grande impulsionadora e principal crítica, está agora a recomeçar e tem vários projetos em mãos e na mente. Está também à procura de um espaço que funcione como o seu ateliê e onde possa juntar todos os seus trabalhos. “Neste momento esse é um dos meus problemas. Não tenho espaço para ter todas as peças juntas, tenho-as espalhadas, em garagens de amigos e noutros locais”, realça, considerando que algumas estão em exposição em alguns espaços da cidade mas que teriam “muito mais força se estivessem todas juntas”.
Conta que já as ofereceu “à cidade de Coimbra” e lamenta que Coimbra seja “a cidade do conhecimento mas não do reconhecimento”. Continua, contudo, a reafirmar que “a instituição da cidade que as quiser pode ficar com elas, só que com a condição de estarem à vista de todos” e de as poder visitar quando quiser. Trata-se, como sublinha, de um trabalho com um valor que não consegue calcular, daí que esteja completamente fora de questão vendê-las. “Só eu e a minha família percebe o valor destas peças, tendo todas elas um toque meu, um pouco da minha identidade. Tenho um amor profundo por elas, são uma forma de contar a cidade, não só aos atuais mas acima de tudo aos vindouros”, sublinha este autodidata que dedica, em média, pelo menos “duas a três horas por dia a este trabalho, procurando fazer sempre o melhor que sabe, testando os seus limites e procurando superar-se a si mesmo.
Na sua lista de projetos estão muitas outras, como o Convento de Celas e “uma grande aventura” que envolve muitos monumentos da Baixa, como o Mosteiro de Santa Cruz, o Café Santa Cruz, o Jardim da Manga, o antigo Mercado, o antigo edifício dos CTT (que foi consumido pelas chamas), a Escola Sidónio Pais (hoje Jaime Cortesão), a antiga esquadra da Polícia e a antiga Torre de Santa Cruz.
Castelos de Portugal inspiram nova coleção
Moura Távora não cria só pelo prazer de criar. Procura trabalhar por coleções. A primeira, já com 14 peças, é dedicada a Coimbra, a segunda é inspirada nas casas portuguesas e está agora a preparar uma terceira, que terá como tema os castelos de Portugal
“Há 272 castelos devidamente identificados em Portugal. Um património riquíssimo que poucas pessoas conhecem e que estou a começar a trabalhar”, realça.
Cada obra é preparada, como explica, de forma “muito simples” mas cuidadosa. “Visualizo a peça, ganho gosto e identifico-me historicamente com ela. É uma questão de sensibilidade, ir muitas vezes ao local e tirar medidas também com os olhos…”, diz.
Nesta preparação já lhe aconteceram muitas coisas curiosas, como ser detido ao raiar do dia nos Arcos do Jardim, para onde foi numa madrugada quente de agosto, de mochila às costas, despertando desconfiança em duas senhoras que julgaram que estivesse ali para “pôr uma bomba e chamaram a polícia”.
As suas criações, verdadeiras obras de arte em miniatura, resultam de “um trabalho muito minucioso e atento”, de “muito amor e paixão” pelo que está a fazer. “Se não pusermos amor e paixão no nosso trabalho não o conseguimos fazer, não nos animamos. E, nesta área, não se pode ter pressa. Digo sempre que sei quando começo mas nunca quando acabo”, explica.
E esta é uma dedicação exclusiva. “Quando estou a criar não estou em mais lado nenhum. Já tive várias situações em que até me levaram as refeições, porque me esquecia de comer. Sou capaz de estar ali horas e horas a fio sem me aperceber”, realça.
Família, arte, desporto, política…
Moura Távora é um homem multifacetado. Conjuga esta paixão que sempre alimentou desde a infância, com outras que o foram surpreendendo ao longo da vida, a começar pela família que sempre soube compreender e respeitar o tempo (muito) que dedica a estas construções, uma ausência consentida que, no final, se traduz em mais um “bebé” que envolve todos.
Conjugou sempre estas grandes paixões com a atividade profissional, tendo trilhado o seu percurso como técnico de telecomunicações, na Portugal Telecom onde, nos últimos 15 anos de atividade, esteve ligado ao desporto, área que também lhe diz muito já que praticou atletismo até aos 41 anos, altura em que uma paralisia facial o obrigou a parar. Mais recentemente deixou-se seduzir também pela política, integrando o executivo da Junta de Freguesia de Santo António dos Olivais.
Foi, aliás, a arte que lhe abriu esta porta. Recorda que se cruzou um dia, quando saía do ateliê que tinha na Arregaça, uma casa que está agora devoluta, com Graça Oliveira, que abordou um pouco receoso, falando-lhe da sua obra. E foi assim que, depois de quase 20 anos “escondidas”, as peças foram tornadas públicas, conquistando de imediato as pessoas.
“Quando mostrei as peças à Graça combinámos fazer uma exposição no Dolce Vita. As pessoas gostaram e eu fiquei muito contente e mesmo vaidoso. A partir daí animei-me mais e tinha o objetivo de todos os anos inaugurar uma peça no Dolce Vita, o que fiz durante seis anos, através da Junta de Santo António dos Olivais que me deu a mão”, conta, agradecendo ao presidente Francisco Andrade que, naquela época, há oito anos atrás, também assumia os destinos da freguesia.
E foi também graças a ele e à sua insistência que acaba por entrar na política. “Fiquei com algum receio, porque até sou de uma área política diferente da deles, não tinha partido na altura, mas acabei por aceitar o desafio. E em boa hora o fiz porque estou a gostar e tem-me permitido aprender muito sobre a minha freguesia e a minha cidade. E não deixa de ser curioso o facto de ter sido também a arte que me abriu este caminho”, realça.