O agosto dilui-se depressa, prolongando as horas quentes pela azáfama das colheitas. Os dias vão minguando numa véspera outonal que as plantas vão anunciando ao de leve. O fruto vai-se colhendo, secando e arrecadando como quem guarda um ciclo inteiro feito da partilha entre o Homem e a Natureza, essa mesma Natureza que é sempre mais generosa e poderosa que a figura de quem semeia, amanha e cria. Uma filosofia de vida que se comprova a cada apanha, pois quem bem cria, bem colhe, só por obra de azar é que assim não é.
Enquanto as cidades se vão começando a movimentar num regresso “novo” para um tempo “novo”, os territórios rurais continuam mais monótonos do que nunca, numa estagnação cada vez mais acentuada. A paisagem vai mudando de texturas e de cores ao correr das estações, os sons ora se intensificam ora se perdem, os lavradores são cada vez menos, perdendo a terra homens e mulheres que vão entregando as leiras a um abandono gradual pela falta de “forças” e saúde. Hoje só por gosto se amanha, poucos o fazem por subsistência nestas serranias onde as dádivas da terra germinam e crescem em leiras onde mal entra um trator. Num minifúndio cada vez mais gritante de salvação e de apóstolos é por vezes a arquitetura rural e paisagística o valor maior desta poesia orográfica declamada de socalcos e penedos, onde os vales mais férteis são ainda o celeiro mais abundante e preservado.
O sol nasce entre o silêncio, cantarolado pela voz esganiçada dos galos, penetrando nas ruas e no casario, este ano alvo das lentes desses turistas ao acaso que deram com os caminhos para o Interior. Em anos “sãos” nem sequer se lembram da beleza e da cultura destes lugares emoldurados de serras e valeiros, este ano anda o povo desconfiado e amedrontado por quem vem, ao mesmo tempo triste e chateado por não poder mostrar ao visitante a presença normal e nítida da sua gente, que apesar de pouca é contagiante. “Nunca por cá acharam nada bonito e agora em tempos de peste vem gente de toda a parte… Rai’sos parta”. Sentem por aqui uma espécie de afrontação humana que nunca sentiram, pois o aldeão bem gosta de receber, “mas em anos de cautela, até são demais…”
Param os carros à borda dos caminhos para ver passar o gado, para sentir a frescura das ribeiras, para assistir à colheita de um campo de milho ou outro que se vai acarretando para as eiras, para apanhar uns bagos de uvas de uma parreira de cachos que dissolve as aldeias num só cheiro, ou trepam mesmo a uma figueira os mais aventureiros, onde os figos já “pingam de mel” como que só por vê-los se auga quem não os provar.
O povo vai saudando o visitante enquanto goza a sombra debaixo dos beirais, à porta da taberna ou no largo da aldeia onde este ano a procissão não passa. Que fadário este tão triste de ver que os cartazes de grandes festejos e seculares tradições deram lugar em altos números aos folhetos fúnebres que carregam de um luto atípico os muros e os postes onde se afixam. Não se ouvem tocar os sinos para um batizado, para um casamento e chega a ser mesmo raro o repique para as missas de domingo. Falta-lhe o toque do gaiteiro, a romagem às ermidas, a arruada da banda, os leilões renhidos, os bailaricos de verão, todo aquele convívio festivo, o sagrado e o profano que são parte da essência de qualquer lugarejo português. Mas festas, só algumas vão Avante.
O sol cai no mesmo silêncio que nasceu, com simples variantes que de dia para dia se apreciam com mais respeito. “Ah rapaz, isto já na se cura no mê tempo…” Assim me dizia uma voz dos seus 80 anos, numa frase portadora de uma incerteza comum que balança entre a ciência e a sociedade, entre a crença da vida e a crença a um Divino que por estas aldeias é o médico mais aclamado para o corpo e para a alma, essa divindade que nas povoações mais recônditas continua a ser o único médico ou farmacêutico, o único advogado, o único agrónomo ou veterinário, o único meteorologista, tudo o que possa assumir depois da sabedoria popular das suas gentes.