22 de Janeiro de 2025 | Coimbra
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Mestre Manuel Ribeiro mostra como se pode transformar “lixo” em arte

24 de Maio 2019

A arte de criar é um dom mas também uma paixão. Manuel Ribeiro, 81 anos, é um exemplo de que com pouco se faz muito e que é sempre possível encontrar uma utilidade naquilo que, na maioria das vezes, é classificado como “lixo”. Um espólio de mais de 200 peças dá a conhecer o artista mas, acima de tudo, o carinho com que trata o património da sua cidade e da região.

Conhecido como mestre Ribeiro, o senhor Manuel é perito em transformar aquilo que já não tem utilidade em verdadeiras obras de arte. A sua paixão pelo artesanato é bem conhecida dos amigos que o ajudam a manter viva, reunindo e guardando aqueles materiais que sabem que, nas suas mãos, ganharão outra vida e beleza.

Manuel Ribeiro, morador no Bairro Norton de Matos, na Freguesia de Santo António dos Olivais, é um exemplo de que é possível envelhecer com qualidade de vida e dinamismo. Conta 81 anos mas ninguém lhos daria. Mantém um ritmo digno de um jovem, dividindo o seu tempo entre o seu ateliê improvisado, nas traseiras da habitação que há tantas décadas partilha com a esposa, com a labuta do campo, num trabalho agrícola que encara mais como lazer e uma forma de manter-se ativo e em contacto com a natureza.

Apesar de alimentar o gosto pela arte desde a infância – quando começou a criar os próprios brinquedos com carcódia de pinheiro e carrinhos de linhas e a fazer moinhos nas árvores -, foi só depois da reforma que o artesanato surgiu com mais intensidade na sua vida. Diz que sempre criou, que isso lhe está no coração como o sangue que lhe corre nas veias. Contudo, foi depois de ter deixado a empresa de petróleo onde trabalhou até chegar à reforma, que sentiu que precisava de algo mais, que lhe preenchesse o tempo livre mas que também lhe enchesse a alma.

“O período da reforma foi muito difícil. Foi uma mudança muito grande que me fez andar um pouco abalado. Mas, com o tempo, lá me fui adaptando e hoje tenho os dias preenchidos, entre estes trabalhos artísticos e uns terrenos que tenho na zona de Condeixa, onde me dedico à agricultura e vou cortando uma lenha”, conta.

Quando lhe perguntamos sobre a sua arte, os olhos do mestre brilham de emoção e de entusiasmo. Explica que todos os seus trabalhos – e são muitos – são feitos com materiais aproveitados, desde os fósforos, às caixas de fruta, aos paus de gelado, cartão e outros materiais reciclados.

Uma casa que é quase uma galeria

Da sua vasta coleção, que pode ser apreciada na sua casa e nas várias exposições em que tem participado, destaca os 103 fontanários que recriou desde 2001. Explica que fez “todos os fontanários de Coimbra”, bem como outros do país e mesmo do estrangeiro, estes com recurso a fotografias. A ideia nasceu da preocupação que sentia ao ver alguns deles tão destruídos ou a deixarem de ter água. “Não podemos esquecer que antigamente, durante tantos anos, eram os fontanários que asseguravam o abastecimento geral da água nas cidades e aldeias. Apercebi-me que muitos estavam a desaparecer e, perante essa realidade, lamentei que as gerações mais novas não chegassem a ter conhecimento deste património e da sua importância”, conta.

E assim nasceu a sua primeira coleção temática. No total, conta 103, todos feitos como se de uma grandiosa obra se tratasse, com recurso a desenho e respetiva planta, construção da maquete em cartão e só então o início da obra, em madeira lixada e envernizada. É assim que os trabalhos começam a ganhar vida, miniaturas perfeitas dos monumentos originais feitos com materiais recolhidos de várias formas, com o envolvimento de amigos e, até, do comércio local.

Depois da coleção dos fontanários, Manuel Ribeiro nunca mais parou. Destaca também a coleção dedicada à Universidade de Coimbra, inspirada na classificação da Alta e Sofia como património da Humanidade pela UNESCO. Começou por fazer as fachadas dos colégios da Rua da Sofia mas depois subiu à Alta, onde “bebeu” inspiração para fazer também as dos colégios da Universidade.

A paixão pelo desporto e pela música não lhe passa ao lado, como o testemunha o seu espólio. Com paus de gelado e fósforos fez representações das várias modalidades desportivas mas também de alguns instrumentos musicais, onde sobressai a guitarra de Coimbra.

O concurso das “7 Maravilhas” que elegeu as melhores Aldeias de Portugal conduziu-o para as aldeias do xisto da região. Milhares de bocadinhos de fósforo transformaram-se nas casas típicas do Piódão e de outras aldeias do xisto da Lousã. Assume que se “perde” em cada construção. Não faz contas ao tempo, sabe quando começa mas não pensa em quando acabará. “Trabalho em casa, num cantinho que dedico à arte e onde o tempo é só meu. Quando lá estou, o que acontece quase todos os dias, o tempo para. Por vezes, no final, ao olhar para o trabalho, fico a pensar se fui mesmo eu que o fiz”, realça.

Quanto ao trabalho é, sem dúvida, minucioso, milhares e milhares de pedacinhos que se vão juntando, como um puzzle que se constrói peça a peça. Basta olhar para uma peça para o perceber. “Numa das casas tenho 1.400 bocadinhos de fósforos”, explica, acrescentando que, só em casa, tem mais de 200 peças, para além das que já fez para oferecer.

Muitas delas já estiveram várias vezes expostas em vários espaços da cidade e da região. Tem ido também a várias escolas, mostrar a sua arte e técnica às crianças e jovens que, como conta, “ficam encantados”.

O apego e carinho que tem por cada trabalho faz com que seja impossível vendê-lo. Com dois filhos e três netos, todos eles apreciadores da sua obra, tem feito várias peças para lhes oferecer. Já as suas coleções guarda-as em casa, como verdadeiras relíquias que gosta de ter ao seu redor e de apreciar quando quer, um “mimo” que oferece também à mulher como forma de a compensar pelo tempo que as suas criações lhe “roubam”.

“Quanto mais difícil é a peça, mais gosto me dá”

Entre as centenas de peças já feitas, Manuel Ribeiro assume que a que mais gosto lhe deu fazer foi a guitarra de Coimbra, toda feita com madeira de caixas. Se por um lado conta o simbolismo da peça, por outro é o desafio que lhe dá sabor. “Quanto mais difícil é a peça, mais gosto me dá. Por vezes não é tanto a dificuldade da peça em si, mas o que está por detrás dela, o sentimento, a minha história de vida, o que me liga a ela”, explica. Isto porque, como frisa, “para fazermos uma peça é preciso conhecermos a história das coisas”. E nisso Coimbra é “uma cidade muito rica”, uma riqueza que é alheia a muitos dos seus habitantes. “A população de Coimbra não conhece nem valoriza o seu património. Conhecem melhor a cidade os estrangeiros do que os seus naturais”, lamenta.

Nas exposições que tem feito, pretende alertar a comunidade para essa riqueza, desafiando as pessoas a olharem para o património “com um olhar diferente”. Faz também isso na sua própria casa, uma “espécie de galeria” que os vizinhos gostam de visitar, procurando estar sempre a par da obra que tem em mãos.

Tem, no fundo, Coimbra e o seu património dentro de casa, o espaço que considera “o ideal” para guardar os seus “tesouros”, fruto de uma paixão que começou cedo e que alimentará toda a sua vida. Continuando a somar centímetros e milímetros, promete continuar a criar e tem ainda muitos sonhos por concretizar. Um deles passa por fazer os órgãos das igrejas de Coimbra, “muitos e muito bonitos”. Espera começar pelo da Igreja de Santa Cruz. Na mente já tem o que pretende e no ateliê não lhe faltam também materiais. Agora é preciso pôr mãos à obra, com muita paixão, a mesma que põe em tudo o que tem feito ao longo destes 81 anos de vida.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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