Nasceu em Coimbra, mas tem feito do mundo a sua casa. Já viveu no Porto, em Moçambique, nos Países Baixos, em Espanha e, na última década, na Argentina. Formada em Arquitetura, Júlia Barata acredita que essa área lhe deu ferramentas úteis para os temas que tem abordado na banda desenhada. O mais recente, “Família”, foi lançado no início do ano, em Portugal, e é uma continuação de “Gravidez” (2017), no qual a autora fala sobre a questão da maternidade. Em declarações ao “O Despertar”, Júlia Barata sublinha que a banda desenhada pode ser o ponto de partida para gerar debates importantes, nomeadamente, sobre ser mulher, relacionamentos ou papéis sociais.
O Despertar [OD]: O que distingue a ilustração da banda desenhada?
Júlia Barata [JB]: A diferença é que a ilustração, em geral, é um desenho sujeito a um texto, portanto, pode ser os livros-álbum ou a ilustração de um artigo dos media, ou a capa de um disco. Eu faço ilustração também por uma questão de mercado laboral, mas aquilo que tenho vindo a desenvolver mais é a banda desenhada, a narrativa gráfica. Na banda desenhada, o que mais me fascina são os limites quase infinitos do diálogo entre imagem e texto.
[OD]: Foi, por isso, que decidiu seguir o caminho da banda desenhada?
[JB]: Eu não sei se há uma decisão, assim, completamente racional de raíz de fazer isso, é uma coisa que me saiu assim. Eu gosto de contar histórias e de desenhar. Isso sempre esteve presente e este é um canal que me permite fazê-lo. Mas, sim, a mim é o que me fascina, é como contar uma história através de imagens e texto: o que transmitir através do desenho, o que transmitir através do texto, essas decisões. Diverte-me bastante. Até a passagem ao audiovisual também me parece super interessante.
[OD]: Já teve experiências com várias culturas e diversos países. Essa realidade influencia as suas criações?
[JB]: Creio que sim. Creio que somos todos um puzzle dos diferentes vínculos culturais que vamos acumulando. No meu caso, ao viver quase 10 anos em cada sítio, isso vai construindo a minha pessoa e vai dando misturada, desde elementos estéticos e gráficos. Tudo isso vai formando uma amálgama que está presente na tomada de decisões num processo artístico.
[OD]: A Júlia é formada em Arquitetura. Há pontos que são transversais entre essa área e a banda desenhada?
[JB]: Eu suponho que sim. A banda desenhada permite-me introduzir esse mundo: prédios partidos ao meio, com os ferros a sair, acho piada a imaginar os edifícios, tanto desde as perspetivas, – isso tem bastante a ver com a arquitetura -, como também da expressão dos materiais construtivos e dos elementos de construção. Muitas vezes parto as paredes ao meio e mostro o que é que tem lá dentro, desde a parte técnica. Isso diverte-me.
[OD]: A banda desenhada é uma forma singular de contar histórias?
[JB]: Depende da banda desenhada. Pode ser mais singular, mais comercial, pode ser tudo. É uma linguagem, como é a literatura. Se uma pessoa diria que a literatura é uma forma singular de contar uma história? Depende do que for feito com ela. Pode ser um exercício artístico singular ou não, creio eu. Acho que é um campo de investigação extremamente lato, com imensas possibilidades criativas e com imensas possibilidades de singularidade ou não. Depende do objetivo de cada artista. No meu caso, eu tenho um caminho não muito comercial. Gosto dessa investigação mais experimental. Partamos do princípio de que a banda desenhada é uma linguagem que, dentro, pode ter diferentes abordagens e, então, como tal, cada um é que decide o que é que faz com essa ferramenta.
[OD]: O seu último livro, “Família” vem no seguimento de outras obras em que a abordagem da mulher e o seu relacionamento com a sociedade é marcante. A banda desenhada pode ser usada para criar debates importantes?
[JB]: Eu estou plenamente convencida que sim. Não só que pode ser, como deve ser. E é pena que ainda seja uma linguagem que não tem um mercado ou não se usa tanto com esse fim, mas eu acho que é um meio perfeito para falar de muitas coisas. Acho que é um meio que pode ter um público bastante lato e mais aberto até do que a literatura. Ou seja, através do jogo entre a imagem e o texto, acho que podemos chegar a muitas pessoas: tanto a um público jovem, como juvenil, como adulto, e isso pode trazer imensos debates temáticos, conceptuais, políticos e também de abordagem histórica.
[OD]: Tem algumas iniciativas a decorrer em paralelo com estas edições, nomeadamente, um projeto de entrevistas. Em que consiste?
[JB]: São entrevistas a portugueses imigrantes no sul da Argentina, numa zona que se chama “Comodoro Rivadavia”, a segunda maior comunidade portuguesa na Argentina. Achei engraçado ir perceber porque é que as pessoas tinham ido para lá, quando é que tinham ido, e de onde. Fui lá em setembro, fiz entrevistas a uma série de pessoas e agora estou no processo de desenhar um bocadinho a história de cada uma delas. Muitas têm 80 anos e são histórias de migrações, que, depois, ficaram e promoveram a cultura portuguesa. De volta à banda desenhada, acho que é um canal que pode servir para narrar estas histórias de uma maneira que seja acessível a muita gente. Acho que nos ajuda a perceber também o presente através de coisas que aconteceram no passado.
[OD]: A Júlia é uma autora que pretende, de alguma forma, dar voz ao que a rodeia?
[JB]: Não sei se seria a definição que eu usaria, mas depende das coisas que me interessam, sim. Agora estou bastante interessada, mas não em tudo o que me rodeia. Há coisas que me interessam e agarro e outras que não me interessam e às quais não pretendo dar voz nenhuma. (risos)