Abordar a questão dos incêndios rurais em Portugal é complexa, por multifactorial, e sensível, pelos interesses envolvidos. É possível que quem leia este texto, logo a começar pelo título torça o nariz. Se tal acontecer estou no bom caminho, pois nem todos gostam de mexer em feridas, sobretudo as auto-infligidas ou das quais colhem proventos.
A idade que já tenho, aquilo que li e estudei, permite-me, creio, descrever a realidade com a qual cresci e que tenho dificuldade em aceitar, pelos motivos abaixo expostos.
Mas tudo tem um princípio e, na perspetiva histórica sabemos que sempre existiram incêndios desde que a Humanidade se começou a instalar neste planeta, desassossegando diversas civilizações que se organizaram de forma mais ou menos conhecida. E nenhuma conseguiu, efetivamente, estancar o problema, apenas contornar ou controlar os seus efeitos – o homem e o fogo andaram sempre de mãos dadas.
O curioso é que, apesar de vivermos o tempo mais esclarecido ao nível científico, a floresta não só continue a arder, seja por fogo posto ou “natural”, mas também que tais fogos tenham atingido um nível de propagação nunca antes visto.
Contudo, uma análise fria permite-nos perceber a raiz deste mal. Desde logo por uma questão sócio-económica que é possível datar com precisão: após o 25 de abril grande parte da sociedade abandonou o setor primário, passando a empregar-se na indústria e serviços. Os campos, outrora de cultivo para subsistência, foram largados por milhares de portugueses, que caminharam na direção das grandes cidades por questões de empregabilidade, abandonando o interior, no âmbito de um processo migratório interno que nos conduziu a profundas assimetrias, nomeadamente à litoralização.
À medida que os anos passaram e com a diminuição abrupta das práticas agrícolas e pastorícias, os campos e a as florestas foram ficando entregues a si próprias. Como se não bastasse muitos proprietários começaram a bipolarizar o aproveitamento da floresta, com predomínio progressivo do eucalipto face ao pinheiro. Ou seja, duas espécies altamente inflamáveis que hoje cobrem a esmagadora maioria do coberto vegetal existente, sem respeito pela diversidade endémica que tanto nos poderia proteger.
Face a esta situação que se tornou vulgar e consentida, nunca o Estado conseguiu intervir de forma a promover o reordenamento florestal, implementando políticas que menorizassem o mais do que sabido e temido. A permissão perante novas plantações, sem defender a criação de quotas por exploração com árvores de contenção como carvalhos, cedros ou sobreiros, abriram ainda mais a porta para que o fogo, em especial durante o estio, pudesse constituir uma ameaça.
Esta demissão de responsabilidades estatais perante a raiz do mal foi acentuada com a decisão de investir cada vez mais no combate e menos na prevenção – traindo as lições que quase todos os manuais técnicos e científicos recomendam – criando um problema adicional: o negócio do fogo, envolvendo compra de materiais de combate que ascendem a números impressionantes na casa dos milhões de euros, incluindo aluguer de aviões a empresas privadas, e em cuja equação podemos ainda incluir a venda da madeira queimada.
Não me parece, na realidade, que sejam os verões quentes e secos, absolutamente normais nas nossas latitudes, nem as alterações climáticas que agora servem para justificar todos os erros da humanidade, ou a emergência da pesquisa de lítio, a influírem decisivamente nos grande incêndios deste ano, que os especialistas comparam já a 2017.
O que na realidade é comparável são as políticas que não funcionam, a situação no terreno que não se altera, os operacionais que não chegam e são criticados por fazer o seu trabalho, a descoordenação de meios humanos e materiais, os jornalistas a promoverem mais fogos violando leis básicas de privacidade, os incendiários com penas suaves, a deficiente fiscalização atinente aos inertes.
Num país com tão reduzida área territorial só não resolvemos este problema, ou o menorizamos, se não quisermos. Precisamos de coragem política, social e económica em torno de um pacto de regime. Enquanto assim não for a vergonha nacional continuará, enchendo os bolsos de uns poucos e delapidando as riquezas nacionais.