São saudosas as imagens que nos percorrem quando revivemos quadros que dizem da nossa identidade. Desta vez era o milho amarelo que secava numa eira dos Carapetos, povoação que delimita as freguesias da Carapinheira e de Arazede. Da estrada era visível uma eirada, cenário muito comum antigamente nesta época do ano e que agora ali estava aos nossos olhos como se tivesse sido montado para um qualquer documentário. Parámos olhando os sulcos deixados no tapete dos grãos, feitos com os pés descalços pela hora da sesta. E havia ainda o que fora a casa da eira, onde imaginámos a gateira na porta que nunca era tapada e onde, por certo, estaria suspenso o “quartolo” da água-pé, sabe-se lá quantas vezes passado de mão em mão e de boca em boca. Por certo que também ali não faltariam os poceiros com que as raparigas transportavam as espigas à cabeça, um ventilador, um gasómetro e uma candeia agarrados a pregos ferrugentos e vários espetos em ferro enfiados nos buracos de um possível borralho improvisado. Encostados a uma parede de adobe, o ancinho com dentes de pau, um malho e uma grande pá de madeira. Por estas ocasiões, eram convidados os rapazes que de noite apareciam nas descamisadas por via dos namoros, a ir malhar as espigas e espadeirar o milho quando já seco, à voz do mandador, que sempre tinha em atenção os esquerdos e os direitos!
Consoante o tempo que fizesse, assim durava a eirada, sendo o milho espalhado todas as manhãs e ajuntado novamente ao fim da tarde, até haver a certeza de que podia ser arrumado sem perigo por via do gorgulho e das humidades. Este quadro tão cheio de vida e de cor remete-nos no entanto para algumas memórias mais negras, afectas ao trabalho do pão e às quais não conseguimos fugir. Foi por este tempo, pelo tempo do milho das eiras, há oitenta e cinco anos, que a minha terra se vestiu toda de luto. À época ele era guardado de noite geralmente pelos homens, que para o efeito dormiam na casa da eira. Os mais pobres, que não tinham as ditas instalações, enroscavam-se numas mantas em locais improvisados, muitas vezes entre as medas. Vezes sem conta, quando aqueles estavam ausentes eram as mulheres quem assumia essa tarefa, levando consigo os filhos, ainda que pequenos, sabendo-se que gritando se pressentissem alguém, os vizinhos acorriam. Numa noite ventosa, daquelas que puxam o calor para o dia seguinte, a tia Lucília deixou os dois mais velhitos na cama e tomou rumo virada à choupana, onde a palha já havia sido trilhada, sendo que esse tipo de cabana tem apenas acesso ao interior por um dos lados. Nos braços levava a filhita nascida há pouco tempo e outros dois agarrados ao avental, tendo deixado a candeia acesa à entrada que momentos depois ateou o fogo à palha. Irrompendo pelo lume fora com a mais nova ao colo, outro agarrado com os dentes e outro arrastado pela mão ainda livre, aquela mulher acabou por sair daquele inferno com os filhos a arder. Cá fora, gritando, o povo acudia tentando apagar as chamas que os envolviam mas tal não impediu que a pequenita ali mesmo viesse a morrer. Esta estória tenebrosa foi-nos recordada numa recente tarde de domingo pelo tio Ilídio, um dos filhos sobreviventes à tragédia quando tinha apenas três anos. Hoje e agora, pretendemos louvar a heroicidade desta mãe e ao mesmo tempo homenagear todas as outras que, mouras de trabalho e sempre de luto, conseguiram, para matar a fome aos filhos, transformar a terra em pão.