Estado de direito é aquele em que todos, governantes e governados, estão sujeitos à lei, proveniente de órgãos democraticamente legitimados, e aplicada por tribunais independentes, ao contrário do que acontecia nas monarquias absolutas ou nos regimes totalitários. No Estado de direito vigora o princípio da separação de poderes entre os órgãos de soberania e todos os cidadãos são iguais perante a lei. Por isso também se chama Estado de direito democrático, acentuando assim a origem popular da soberania e do poder político, o qual, só é legítimo se for exercido em nome e no interesse da nação, ou do bem comum como diria Rosseau.
Há várias formas e gradações de Estado de direito ou democracia, conforme o elenco dos direitos fundamentais garantidos pelas respetivas constituições. As constituições da Índia e dos Estados Unidos não garantem o direito à saúde ou ao salário mínimo, e estes países são considerados as maiores democracias do mundo e são, indiscutivelmente, Estados de direito segundo a definição supra. O conjunto de direitos reconhecidos por cada Estado, inerentes à personalidade e à dignidade humanas é que qualifica – dá dimensão e qualidade – a democracia. Neste sentido, Estado de direito é também Estado dos direitos (no plural) e quanto mais direitos humanos são reconhecidos melhor e mais justo é esse Estado. O patamar mais elevado do Estado de direito, no atual momento histórico, é o Estado social.
Uma breve resenha histórica do caso português facilitará a compreensão da ideia acima exposta. Até 1822 Portugal era uma monarquia absoluta em que todo o poder pertencia ao rei ou era delegado nos seus servidores pessoais. O povo não tinha praticamente quaisquer direitos, nem mesmo o de ser proprietário dos terrenos que cultivava, pois estes pertenciam, geralmente, ao clero ou à nobreza, e os rendeiros ou servos da gleba pagavam ao senhorio o respetivo foro ou tributo.
A monarquia absoluta foi derrubada pela revolução liberal de 1820 e a primeira Constituição portuguesa aprovada dois anos depois. Ali se reconheceu, pela primeira vez, o direito à propriedade, de credo e à liberdade de culto e de pensamento, embora de forma tímida, pois o direito de propriedade permitia, ainda, privilégios senhoriais e a religião católica-romana era obrigatória para os portugueses. Mas foi um começo. A construção do nosso Estado de direito leva, assim, com algumas interrupções (miguelismo, fascismo) quase 200 anos e ainda não está acabada, porque há sempre novos direitos que surgem no horizonte da nossa esperança e entroncam nos valores da igualdade e da solidariedade.
A Revolução republicana de 1910 e a constituição e as leis subsequentes alargaram o leque dos direitos individuais e até esboçaram um conjunto importante de direitos sociais. Foram extintos todos os privilégios nobiliárquicos, reconhecido o direito de propriedade, a liberdade de culto e de expressão do pensamento, na base de igualdade de todos os direitos. O ensino primário foi tornado obrigatório e gratuito. As leis de Afonso Costa e António José d’ Almeida reformaram o ensino (criação das Universidades de Lisboa e Porto) e a assistência pública, decretaram o seguro obrigatório para acidentes de trabalho, incapacidade e invalidez, bem como o descanso semanal para todos os trabalhadores. Foi também reconhecido o direito ao divórcio, instituído o registo civil dos cidadãos e declarada a separação do estado das igrejas. Houve, pois, um significativo alargamento dos direitos civis e políticos, mas apenas um afloramento dos direitos sociais (trabalho, ensino, saúde). O Estado social, como hoje o conhecemos, só começou a construir-se na sequência Revolução do 25 de Abril de 1974.
Com efeito, o artigo 2º da atual Constituição define a República Portuguesa como “Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas (…) visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Pela primeira vez o nosso ordenamento constitucional consagra um conjunto de direitos que acrescentam aos clássicos direitos civis e políticos, de natureza individual, que são a base da democracia política – liberdade individual, sufrágio universal, separação de poderes – os chamados direitos fundamentais de segunda geração – ao ensino, ao trabalho, à saúde – que constituem a base da democracia económica e social, ou seja, do Estado Social de direito democrático.
Deste modo, a Constituição de Abril não se limita a consagrar o direito à liberdade individual, mas reconhece um conjunto de direitos que visam a libertação coletiva e alcançar um mínimo de dignidade ético-social dos cidadãos. O princípio da igualdade é agora uma garantia de acesso efetivo aos direitos sociais e por isso se estabelece como tarefa prioritária do Estado (art.º 9) a promoção do “bem-estar e qualidade de vida do povo e a igualdade entre portugueses”. Esse objetivo implica a realização da justiça social, a igualdade de oportunidades, a correção das desigualdades existentes na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal (artº 81). É neste quadro que se justifica um sistema de segurança social e de ensino públicos, bem como a criação do Serviço Nacional de Saúde.
Os direitos sociais pressupõem que o Estado assegura, através dos seus próprios meios, as respetivas prestações, sem prejuízo da atividade complementar do setor privado. Mas não há Estado social sem a intervenção ativa e solidária do setor público nos domínios do ensino, da saúde e segurança social.
Se compararmos os direitos reconhecidos pela Constituição de 1822, de 1911 e pela atual, verificamos que se foi alargando progressivamente o leque dos direitos civis e políticos (democracia política) até alcançarmos, graças ao 25 de Abril, outros patamares da democracia económica e social, que densificam o Estado de direito. Recorda-se que a mulher só atingiu a maioridade cívica, ou seja, a igualdade, com a Constituição de 1976.
Assim, o Estado de direito, que começou a delinear-se na Europa com a Revolução Francesa, atingiu ou aproximou-se da sua completude, embora nunca esteja acabado, com a construção do Estado Social de direito, após a 2.ª Grande Guerra. Começou então uma era de paz, progresso e justiça social.
Infelizmente, as políticas neoliberais de Thatcher e de Reagan, o mercantilismo que se instalou na Europa e a globalização capitalista que varre o mundo, estão a destruir o Estado Social e o próprio Estado de direito. A União Europeia deixou de ser a Europa dos cidadãos para ser a Europa das multinacionais.
Portugal sofreu da mesma erosão neoliberal. Mas enquanto a Constituição de Abril estiver em vigor e o povo português sentir como suas as conquistas sociais alcançadas, podemos ter esperança. Mas devemos estar tentos e aprender com as eleições dos Estados Unidos e com os nossos erros. Os demagogos alimentam-se das fragilidades das democracias e da falta de caráter dos políticos que a envergonham, traindo a confiança do povo. O Estado de direito é uma construção permanente. O Estado social é um compromisso com o futuro.
P.S: Parabéns a O Despertar pelo seu centenário.
ANTÓNIO ARNAUT (Advogado)