Na Lousã há crianças em ensino doméstico. Uma opção de escolarização que tem vindo a aumentar e que dispensa a criança de ir à escola, aprendendo em casa com quem com ela habite.
Aprender em casa, sem um professor, pode parecer coisa de outros tempos. Mas não é. É algo atual e está a convencer cada vez mais famílias.
Exemplo disso são os Ferreira Esteves, que trocaram o burburinho de Coimbra pelo sossego e pelo ar mais puro da Lousã, ainda quando Simone, a filha mais velha, frequentava o infantário. Ingressou no ensino doméstico ao entrar para o primeiro ano enquanto Henrique, o irmão mais novo, saiu da creche aos três anos. Neste momento, ela está no sexto ano e ele no terceiro. Podem manter-se neste tipo de ensino até ao final do secundário.
Para frequentar o ensino doméstico é necessário estabelecer um protocolo, elaborado pelo diretor do agrupamento de escolas onde a criança está inscrita, em conjunto com o encarregado de educação. De seguida, é feito um plano curricular consoante os interesses de cada criança. O da Simone tem uma componente mais académica, enquanto o do Henrique é mais prático.
O trajeto de cada um é acompanhado pela escola, ao longo do ano letivo, através de reuniões. No final de cada ano terão de apresentar um portefólio composto por todos os seus trabalhos, de modo a que a escola se certifique de que não há abandono ou negligência escolar. O único momento de avaliação é a realização dos exames nacionais no final de cada ciclo e ensino secundário.
Os dias destas crianças não são preenchidos pelo toque de entrada ou saída, nem pelas cadeiras a arrastar. Não há um quadro em ardósia pregado na parede. Só uma casa normal. Enquanto Simone está no quarto a fazer trabalhos manuais, o Henrique está no jardim com um amigo a contar os metros de material necessário para construir um slide, uma das suas brincadeiras preferidas.
O dia-a-dia dos irmãos
O quotidiano da Simone e do Henrique é quase vivido no modo unschooling, isto é, sem escolaridade. O tempo é dividido entre brincar e aprender a matéria que lhes é ministrada pelo responsável educativo e em tudo idêntica à que é dada na escola. Os irmãos fazem jogos de tabuleiro, constroem muitos dos seus brinquedos, vão para casa dos amigos, colaboram nas tarefas domésticas, visitam centros de ciência e só jogam no computador meia hora por dia. A Simone tem explicações de matemática, mas a seu pedido e só vai à escola para frequentar o voleibol. No entanto, os dois irmãos praticam outros desportos em clubes locais como, por exemplo, o futebol, badminton, patinagem e natação.
A aprendizagem não é necessariamente feita em casa, pode ser em qualquer outro lugar e acompanhada por qualquer outra pessoa. Já o ensino da matéria é da responsabilidade do encarregado de educação. Quem ensina terá de ter, no mínimo, uma licenciatura.
Neste caso de que estamos a falar, a mãe, Lara Ferreira, é quem desempenha esse papel de professora. É enfermeira e reduziu a carga horária para poder estar com os filhos. Trabalha à segunda, terça e quarta feira mas inicialmente, quando surgiu a possibilidade de optar pelo ensino doméstico, estava em casa sob licença sem vencimento. Na altura, o marido e pai das crianças trabalhava em Angola, mas voltou para tomar conta dos filhos na sequência do regresso da esposa ao trabalho, terminada que foi a licença. Nos dias em que a mãe trabalha, ficam a estudar ou o pai leva-os à biblioteca, ao parque, a andar de skate ou patins ou qualquer outra atividade.
O ensino doméstico “é o direito que temos, enquanto pais, e consagrado na nossa Constituição de definir os moldes de educação que damos aos nossos filhos, seja ela na escola ou neste regime, de acordo com a filosofia familiar”, define Lara Ferreira.
Souberam da existência deste tipo de educação através de “uma amiga enquanto falávamos da carga horária e no facto de os trabalhos de casa serem muito pesados. Discordávamos ambas daquilo e aí nasceu a semente de criarmos uma comunidade de aprendizagem, algo alternativo, mas que acabou por não ser criada”, explica.
“Em 2014 éramos 60 a praticar este tipo de ensino em Portugal, agora somos mais de 900. Em seis anos houve um boom”, acrescenta.
“As crianças não são todas iguais”
As vantagens deste tipo de educação não estão relacionadas só com a aprendizagem. Também trazem aspetos positivos a nível emocional e social como, por exemplo, o restabelecimento e fortalecimento da relação familiar. “A vinculação entre pais e filhos é uma coisa que se perde muito cedo hoje em dia, sendo altamente prejudicial à saúde mental da criança”, afirma Lara Ferreira.
Defende, ainda, que esta proximidade é “uma mais-valia para o crescimento e desenvolvimento de todas as competências socio emocionais” e que “uma boa vinculação promove mais colaboração”.
A família privilegia a ligação e interação com assuntos do dia-a-dia, de modo a que os conceitos aprendidos não sejam esquecidos. O respeito pelo ritmo é um dos aspetos tidos em conta “porque as crianças não são todas iguais”. A Simone aprendeu a ler sozinha antes de eu pensar em pô-la em ensino doméstico. Sempre teve interesse por letras. Já o Henrique, só agora está a demonstrar algum proveito em saber ler”, acrescenta Lara Ferreira.
O facto de as crianças estarem juntas em sala de aula poderá, segundo esta mãe, pôr em causa a aprendizagem de cada um. Lara acrescenta que “todos da mesma idade, ao mesmo ritmo, na mesma sala e sequência, não serve para toda a gente. Há miúdos que se desenvolvem fisicamente primeiro, enquanto a parte cognitiva vem muito mais tarde”.
Menos sociais mas mais dependentes?
O facto de estas crianças passarem mais tempo do seu dia com os seus pais e não irem à escola, poderá originar dúvidas relativamente à sua independência e desempenho social. De modo a refutar esta afirmação, Lara Ferreira elucida que “a socialização na escola não é toda boa. A circunstância de os alunos estarem em grupos homogéneos etários cria algum distanciamento entre as diferentes idades, podendo originar bullying contra o grupo dos mais novos. Esse tipo de socialização não é natural. Nós socializamos, na vida adulta, com uma série de idades”.
Relativamente à autonomia, afirma que “a dependência é natural no ser humano e é desejável nos primeiros anos para que, mais tarde, haja uma verdadeira independência”. No entanto, explica que nos dias de hoje ela é forçada, dando origem a “uma independência precoce que será frágil, conduzindo a diminuídos níveis de maturidade”, esclarece Lara Ferreira.
Será economicamente sustentável?
Abdicar da carga horária ou até reduzir o custo de vida para acompanhar a educação dos filhos a tempo inteiro são algumas sugestões desta mãe.
“As pessoas, normalmente, dizem que gostavam muito de fazer ensino doméstico, mas não podem porque têm despesas. Eu não digo que seja mentira, mas a questão é querer e querer é poder” – afirma Lara – “ e abdicar do salário implica baixar a despesa. Não é possível para muitas famílias, mas poderá ser para muitas outras”.
Segundo a mesma, o segredo está no estilo de vida, na necessidade de “uma mudança de mindset”, ou seja, mentalidade. “Está tudo a pensar como os outros. É muito difícil ser diferente na escola” – afirma – “aliás, ela [a escola] mostra-nos a dureza de ser diferente. Quem o é, é castigado ou porque usamos óculos, temos as orelhas para fora, somos muito gordos, muito magros… ser diferente nas ideias é a mesma coisa e a escola mostra-nos muito isso. Não é algo consciente. O trauma é subliminar. Fazer diferente na nossa vida e na nossa família também custa porque, na esmagadora maioria das vezes, não temos exemplos de amigos/conhecidos que ousaram romper o status”, afirma.
Sublinha, ainda, que “isto é tudo uma filosofia de vida”, da qual esta opção “faz parte” e esclarece que “o ensino doméstico é uma pétala numa série de pétalas”.
No entanto, Lara Ferreira realça que esta mudança não deve ser vista como a solução para os problemas familiares, nem sinónimo de felicidade: “isto depende de família para família”, pois, este tipo de educação “é o que eu faço. O ensino doméstico permite às famílias ensinar à sua maneira, mas dentro dos limites dos exames”.