16 de Janeiro de 2025 | Coimbra
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VASCO FRANCISCO

“Deus não dorme!”

19 de Julho 2019

O vento soprava numa nortada que parecia varejar os olivais à força, deitando por terra aqueles pequenos frutos ainda mal vingados, que haveriam de crescer e padecer para se finarem num autêntico fio de ouro aos olhos de qualquer lavrador. Esse mesmo vento assobiava num tom estranho penetrando os quelhos da aldeia ao romper deste mês de verão, que o povo afirma que nem parece julho. Dizem-me que conheciam bem as “manhas do tempo”, mas cada vez o entendem menos, até a lua anda cada vez mais mentirosa.

“Deus não dorme menino!…” Diziam-me há tempos, bem sabendo que o Homem é o maior pecador perante uma natureza tão ferida e sacrificada. “Estragámos, agora pagamos todos! Não vês o lixo que vai lá no mar…”. Os meios de comunicação são hoje das melhores ferramentas de alerta. Agora entendem a lixeira que vai lá no dito mar, por terra e no ar. Por vezes se escrevesse apenas com os olhos e não com a alma desenharia palavras escuras e frontais, sem qualquer ânimo ou beleza perante certos pedaços de paisagem que não merecem qualquer tom burilado da minha parte.

A teimosia de tal ventania fazia com que as portas e portões das casas batessem numa força impiedosa. Ali bem perto da minha rua, um rapazito brincava à porta de casa com uma pequena coleção de carros que o entretinham nas horas de brincadeira neste tempo de férias. “Vês Vasquito, olha é só plástico, até a porcaria dos brinquedos são hoje de plástico! Mas olha ao menos trazem o ‘piqueno’ à rua, pois lá na cidade nem sai de casa…”

Aquela conversa estendera-se uns bons minutos, remetendo dois temas tão complementares nos dias de hoje, questões ambientais e sociais perante os hábitos das novas gerações. Alegra-me ver aquele rapazito no degrau das escadas, fazendo-me recordar tempos de uma infância em que a rua era o recreio e a liberdade da minha geração e anteriores. Chegados da cidade ou da vila não havia dia nenhum que a avó não avisasse, “Ides brincar, mas primeiro fazes os deveres!”. Muitas vezes feitos à pressa, o que se queria era aproveitar o resto dos dias grandes em que o sol apenas se mergulhava no poente já para lá das trindades. Não se ficava no escritório ou em algum quarto agarrado a um computador ou a um tablet, a sala de diversões era nas ruas, nos campos, na fonte, enfim por onde havia a liberdade mais genuína, fermento da minha criação e de todos aqueles que tanto corremos pelos carreiros, tantas “macacas” desenhamos nas ruas, tantas cordas puxamos para ver quem tinha mais força, tanta molha dávamos uns aos outros na pia do chafariz, arreliando velhos e novos. De vez em quando a bola ou a bicicleta ocupavam a tarde e se não havia brincadeira logo se inventava um “jogo”. Se a chuva teimava em cair, era o baralho das cartas o nosso fim de tarde, ora com a avó, ora com os amigos. Aos domingos púnhamos os olhos nos mais velhos da terra, na ambição de querer aprender a jogar à malha e a lançar o pião. Todo este ambiente comunitário e livre nos incutiu valores que hoje fazem parte do nosso ser.

“No meu tempo, era um pião a minha alegria, e trepar por esses arvoredos por altura da fruta e dos ninhos… ó tempos… ainda por aí anda um pião, mas já ninguém o lança…”. O rapazito ouvindo o seu avô, pediu-lhe que o ensinasse a jogar o pião. Ali ficaram no meio da rua, mas o moço não estava satisfeito com o seu sucesso ao pião e logo voltou “às corridas” que fazia naqueles polidos degraus. “Velhos são os trapos!”. Seu avô voltava a ser jovem, dando regalo ver aquele cair bem rodopiado do pião, que cuidadosamente metera às voltas na mão, tantas como as que o mundo deu até hoje e ainda há de dar.

As nuvens iam forrando o céu num ambiente escuro, não deixando que o sol se visse deitar entre a serra que nos divide da cidade. Há cenas mudas que são falantes, assim como há pequenos diálogos que são um grande retrato da realidade onde o instinto natural das coisas e das consequências se expressam aos olhos de quem assiste à constante mudança dos tempos.


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