Era aos bois a quem cabia a árdua tarefa de esventrar a terra quando as lavouras eram feitas com a charrua, a que se seguia o desterroar das leivas com os dentes da grade. A partir daí abriam-se os regos com o arado, onde então se fazia a sementeira. Acontece que este trabalho era sempre feito no sentido longitudinal ficando nos topos das propriedades uns espaços de terra crua onde os animais viravam, que só podiam ser lavrados se em sentido perpendicular. São os cabeceiros, a fase final da lavoura que também há-de dar pão. E a nossa gente associou esta tarefa última ao fim da vida do homem!
Talvez por isso, aqui pela Gândara, quando alguém ficava “malzinho” e se adivinhava que a morte andava por perto, dizia-se que estava a dar os cabeceiros: “O tio Joaquim Copas está a dar os cabeceiros, já perdeu o refolgo, o padre foi chamado a administrar-lhe a extrema-unção e tem as janelas e as portas abertas para ver se lhe chega algum sopro de ar”. E o pobre pecante lá acabou por partir. Em situações como estas, estavam já por perto aquelas mulheres de preto, quase sempre viúvas ou mais dedicadas à igreja, que logo iam averiguar se havia uma roipinha melhor com que vestissem o defunto e que não parecesse mal quando fosse a enterrar. Aquelas pessoas nada recebiam: faziam-no, no seu dizer, por caridade e sempre evocavam aquelas que acompanharam Cristo no sepulcro. O ritual que a tia Maria do Canto usava quando vestia os mortos é deveras impressionante. Contou-me ela que, quer ao lavá-los, quer depois ao vesti-los, estava sempre a falar com eles, tratando-os por irmãos ou irmãs, enquanto lembrava os que antes tinham partido, com quem, em breve, se iriam encontrar nesse outro mundo a que já pertenciam. E falava-lhes do perdão dos seus pecados e da presença de Deus à cabeceira quando receberam os últimos sacramentos. Ao ter de lhes enfiar o vestido ou as mangas da camisa, do casaco ou as calças, pedia sempre: – vá lá vira-te, deixa-me ajeitar-te, não te estejas a fazer pesado, já falta pouco! E as outras mulheres que ali estavam com ela ajudavam neste rosário, pois era preciso vestir os mortos que a tia Maria ali fazia vivos!
Acontece que não era só ao vestir-se o morto que por aqui se falava com ele. Tal acontecia também quando os familiares mandavam cortar-lhe a barba, chamando para o efeito o barbeiro lá da terra, com quem tinham uma avença de um alqueire de milho, avença essa que contemplava aquele serviço se fosse homem que morresse. É o José Medina quem nos conta, que durante este desempenho, ainda hoje devotadamente executado por ele quando necessário, também fala com os defuntos: – Ó ti Zé, vire a cara para este lado, não abaixe a cabeça, levante o queixo… E é assim que este homem cumpre a sua piedosa missão!