Naquela longínqua década de trinta, numa vila encaixada no vale do extremo sul da região de Basto, nasceu e viveu até aos seus doze anos, o nosso enigmático personagem, cujo desenvolvimento físico e mental foi estruturado num ambiente de pura ruralidade, em que os meios de subsistência eram escassos – limitados a uma percentagem mínima dos produtos que as terras produziam (vinho, milho, centeio, fruta, etc.), na contingência de um bom ou mau ano de colheitas. Mas aos donos das terras (latifundiários) cabia o naco de leão, firmado num contrato verbal – por compromisso de honra – de dois terços da produção, onde pontificava o seu estatuto de supremacia social e económica, restando para os arrendatários (caseiros-feudatários) a percentagem de um terço, que mal chegava para o sustento da família – entre colheitas – que por sinal, era numerosa.
As suas condições de habitabilidade eram modestíssimas, sem qualquer conforto; as paredes da habitação, inicialmente, não eram revestidas, não evitando o frio e o vento que assim as trespassava; a iluminação provinha de candeias de azeite e/ou de candeeiros a petróleo, regulados para o mínimo consumo, uma das formas de poupança; não dispunham de saneamento básico nem de água potável garantida, porquanto se abasteciam nas fontes naturais e, raramente, nos fontenários municipais, também de água de qualidade duvidosa, por falta de tratamento básico; os colchões das camas eram cheios com caules do centeio e os travesseiros com “coscos” (camisas) das espigas de milho.
Foi, portanto, neste meio social, económico e cultural que aquele personagem consumiu a sua infância, no início da qual foi instado pelos seus avós maternos: – “vai para a escola aprender a ler e escrever para seres um homem, porque nós, de termos que ajudar os nossos pais no amanho das terras, não tivemos essa sorte – e que bem falta nos fez… Por isso, insistimos: – “Vai, e não te esqueças de que o saber não ocupa lugar…!”.
Perante tal veredito, foi-se matricular na escola do sexo masculino, – absolutamente autónoma em relação à escola do sexo feminino, como convinha -, já com sete anos de idade, devido ao condicionamento da data do seu nascimento. Fazia o trajeto descalço, quer estivesse frio, a nevar ou a chover, porque os seus já roçados sapatos eram poupados para ir à missa aos domingos. Havia algumas exceções, uma da quais era para se apresentar na realização dos exames escritos e orais da 3ã e 4ª classes, (obrigatórios naquela época) -, para os quais ia particularmente “indumentado” com um fatito azul de refugo, comprado na feira, com o senão de, quando o vestia e estava a chover, tingir a roupa interior, deteriorando-a mas que, nem por isso, deixava de ser aproveitada para ajuda nas lides da agricultura; os sapatos, como atrás referimos, a precisarem de reforma, camisa e gravata, tanto quanto possível a preceito, conformes com o ato, o que criava também um aspeto relativamente cerimonioso…, a parecer bem.