13 de Julho de 2025 | Coimbra
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Bairro da Relvinha: memórias de um bairro em autoconstrução

6 de Junho 2025

O dia 25 de Abril de 1974 foi transformador na vida dos portugueses. No bairro da Relvinha (em Coimbra), que já tinha uma comissão de moradores bastante reivindicativa, as mudanças começaram rapidamente. Situada a Norte de Coimbra, a Relvinha foi o destino escolhido para residirem as populações desalojadas, em 1954, da zona da Estação Velha para construir a Avenida Fernão Magalhães. Ainda no Estado Novo era um bairro de casas de madeira sobre ocupadas, pobres, sem saneamento, electricidade ou água canalizada. As pessoas viviam com imensas dificuldades e não tinham quaisquer perspectiva de melhorar as suas condições de vida. Os filhos reproduziam os trabalhos dos pais, e as mulheres cuidavam dos idosos e das crianças. Um pequeno retrato do Portugal de Salazar. No entanto, a Revolução de Abril veio trazer a grande oportunidade de mudança para aquelas pessoas. Não uma mudança individual, provisória, mas colectiva.

O programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), uma medida saída da revolução foi um programa do Estado para resolver alguns problemas de habitação que afectavam algumas populações mais fragilizadas e que visava também a intervenção popular no processo. Foram criadas equipas técnicas (exemplo arquitectos, engenheiros) que trabalhavam em conjunto com a comissão de moradores para acabar com as casas de madeira e construir casas de betão com melhores condições de salubridade. Assim, havia um apoio técnico e económico às populações (através de subsídios a fundo perdido concedidos pelo Fundo de Fomento à Habitação), que permitia avançar com processos de auto-construção, lado a lado com os moradores.

Este período foi um momento não só de auto-construção de novas casas, mas também de participação democrática, de cooperação, solidariedade e união entre os moradores. Nesse sentido, este momento histórico faz parte da identidade do bairro e está ainda na memória de todos os que vivenciaram de forma activa estes momentos. Como é o caso de Cila, de 58 anos, criança quando tudo se começou a transformar: “o bairro era todo em madeira e acrescentavam-se barracas quando os filhos casavam”, refere.

O processo de construção começou lentamente com a mobilização de todos os trabalhadores, os meios não ficaram imediatamente disponíveis, mas a ansiedade daquelas pessoas em transformar as suas vidas, para melhor, fê-los avançar. “Raspei muitos tacos quando era pequenina”, afirma Cila com visível orgulho, acrescentando: “as primeiras casas a serem construídas foram feitas com materiais de refugo: os azulejos, os mosaicos, era tudo com defeito; e os tacos aproveitados de outras casas. Antigamente colavam-se os tacos com alcatrão. E nós tínhamos que tirar o alcatrão velho e voltar a aplicar. Metiam os miúdos a fazer isso. Toda a gente colaborava. Ainda fui muitas vezes vender rifas para o parque da cidade com o nosso símbolo. Precisávamos fazer mais dinheiro para as obras. E como era mais fácil as pessoas darem aos garotos do que aos adultos, eram os miúdos que iam. Depois com o dinheiro do Fundo de Fomento já foi possível começar a comprar material”.

Cila faz questão de referir que “as pessoas mais velhas deste bairro trabalhavam muito, acartavam areia na canastra. Só que não era um trabalho certo, não descontavam. Daí as dificuldades.” E acrescenta que: «nunca havia fome, porque “se eu tinha tu tinhas, se eu não tinha tu tinhas”. Existia solidariedade. Algumas pessoas, que trabalhavam em cozinhas, traziam as sobras. Agora não se pode fazer isso. Havia sempre quem desenrascasse um ovo, um quilo de arroz, um quilo de açúcar. Éramos muito unidos. Todos da mesma classe social. Quem vivia melhor ajudava sempre quem não tinha nada. Era uma convivência muito saudável.»

Na conversa com Cila, na sede da cooperativa Semearrelvinhas, também esteve presente Odete, a actual presidente. Muito pequenina na época, quase sem memórias desses tempos, mas muito grata a todos os que lutaram pelo bairro e que lhe permitiram ter casa própria.

Na construção das casas eram sobretudo os homens os mais dinâmicos. “Depois do serviço vinham trabalhar na construção do bairro e as mulheres cozinhavam”, salienta Cila. “Antigamente quando se punha um telhado, ou um piso, faziam-se batatas com bacalhau para comemorar. Eram os donos da casa que ofereciam.”

O processo de demolição e reconstrução demorou o seu tempo e teve várias fases – contando com a participação de várias pessoas exteriores ao bairro, desde técnicos, a voluntários (inclusive estrangeiros e estudantes) que queriam viver a experiência da autoconstrução, da democracia participativa e da criação de uma sociedade mais justa e igualitária. “Depois das primeiras quatro casas veio uma empreitada de pessoas trabalhar, mas já a receber. Também vieram estrangeiros voluntários. Eles dormiam nuns beliches na Escola da Mata e comiam em casa das pessoas do bairro. A minha sogra ia lá levar todos os dias o pequeno almoço, para eles poderem vir trabalhar – que estavam cá a custo zero”, refere a moradora.

Ao falarmos das pessoas que construíram o bairro, Cila lembra a memória de uma das que mais lutou pelo bairro, mesmo fora de portas: “o Jorge Vilas foi alguém que lutou muito pelo bairro. Houve muita gente que se esforçou. Nós comíamos frutas porque eles iam roubá-las às quintas, e depois dividiam connosco. Havia muitas necessidades, muita gente analfabeta. Não havia trabalho estável e toda a gente tinha muitos filhos, às vezes oito. Hoje agradeço muito. A minha casa é pequena, mas dou graças a Deus por ter onde morar e não dever nada a ninguém. Nos dias que correm não estar a pagar uma renda é um descanso.”

A construção das casas foi determinante para as pessoas do bairro, mas houve outros factores que mudaram as suas vidas: a dinâmica cultural e social que se instalou no bairro é disso exemplo: “não íamos a lado nenhum, mas havia pessoas que vinham cá fazer actividades. Por exemplo, passavam cinema nas paredes do bairro e faziam teatro”, refere Cila.

Carlos Santos, outro morador e protagonista da história da Relvinha, acrescenta: “muitos estudantes vieram ajudar-nos. Comiam em nossas casas. Depois cederam-nos a escola e aí já dormiam e comiam lá.  Não saíamos desta zona, não tínhamos condições para o fazer. Assim íamos jogar à bola para o Choupal e tomar banho para o Poço Azul (na entrada da mata). A nossa praia era o Choupal. Levávamos as crianças às cavalitas a pé por aí abaixo. Lá, fazíamos o comer. O Jorge Vilas mais o Nelson iam ao peixe à toca. E as mulheres amanhavam o peixe. Púnhamos os panais no chão e comia-se lá.”

Carlos esclarece que: “o bairro demorou dois anos a ser construído. E só foi feito porque houve muita união. Nós reuníamos as pessoas que podiam trabalhar, incluindo crianças, na medida das suas possibilidades. Ao chegarmos do serviço íamos abrindo fundações para que os pedreiros pudessem trabalhar no dia seguinte. Para chegar o dia em que todos tivessem as suas casas.”  Carlos comove-se a contar estas histórias. Cinquenta anos se passaram e o bairro enfrenta agora novos desafios. A Cooperativa Semearrelvinhas continua a dar voz aos moradores e a dignificar as memórias do bairro, não deixando esquecer que “quando o homem sonha a obra nasce”.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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