Nos textos anteriores, vimos como os Poemas Homéricos, Ilíada e Odisseia, e os mitos e heróis que lhe estão subjacentes nos legaram um conjunto de termos e expressões que fazem parte do nosso alforge cultural: pomo da discórdia; calcanhar de Aquiles; ser uma Helena; fazer de Cassandra, cavalo de Tróia; passar ou viver uma odisseia; ter pela frente ou executar tarefas ciclópicas; voz de sereia; encantos de Circe; estar ou passar entre Cila e Caríbdis; teia de Penélope.
Será por as palavras de Homero serem aladas — as aladas palavras do poeta? E essa feliz metáfora, usada pelo autor da Ilíada, tão vivaz se mostrou ao longo dos tempos. Surge a expressão no ardor da discussão entre Aquiles e Agamémnon, no Canto 1. Vai aquele puxar da espada para matar o seu opositor, quando Atena desce do Olimpo para o aconselhar a não praticar tal ato. Ao vê-la, o herói profere as seguintes «palavras aladas» — a primeira vez que tal sintagma aparece na literatura europeia (vv. 199-205, em tradução de M. H. Rocha Pereira):
Aquiles ficou estupefacto, voltou-se, e logo reconheceu
Palas Atena: os seus olhos tinham um brilho terrível.
Dirigindo-se a ela, proferiu estas palavras aladas:
«Porque vieste, filha de Zeus detentor da égide?
Acaso foi para veres a insolência do Atrida Agamémnon?
Eu te digo, e julgo que o cumprirei:
Por causa da sua arrogância, em breve perderá a vida.»
“Palavras aladas” traduz uma fórmula homérica que ocorre cento e vinte e cinco vezes nos Poemas Homéricos e pode ter subjacente a metáfora do voo dos pássaros: as palavras, assimiladas a aves, teriam asas e voavam da boca do falante para as orelhas do ouvinte. Mas a metáfora também pode referir-se, segundo outras interpretações, ao voo da seta, já que as setas dos guerreiros eram de modo geral emplumadas. Assim teríamos o sentido de que as “palavras acertavam no alvo como setas”.
Deste modo as palavras aladas, saídas da boca do herói, atingem o interlocutor fagueiramente, como penas ou asas de aves, ou ferem, como setas desferidas do arco.
Hoje o sintagma é preferentemente usado para traduzir a sedução da poesia, exprimir a imaterialidade do verso, «o inefável que está na essência» dessa mesma poesia, para utilizar palavras de M. H. Rocha Pereira (Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, Lisboa, 1988). Ou seja, estamos perante as palavras aladas dos poetas.