Já lá vão mais de 60 anos desde a sua criação, mas a idade avançada não a faz esquecer as novas tendências. Na ‘Casa das Bonecas’ encontra-se “o novo e o velho”, com uma característica que, garante quem faz desta a sua casa, é comum a ambos: não são “made in China”.
Existem, hoje, tantas lojas que vendem bonecas. De brincar, enfeitar, pequenas ou grandes, que choram, andam e comem e até já têm um guarda roupa próprio. Aquelas que, quando se estragam ou quando deixam de “estar na moda”, vão para o lixo ou passam para a próxima geração. São as bonecas modernas. Mas existem outras. As tais que, em tempos áureos, serviam de bonito adorno de quartos e salas de palacetes, que se ofereciam às namoradas em jeito de tributo ao amor. Essas, de vestimenta requintada e cabeleira farta, que quando se estragavam eram arranjadas, que podiam ser “operadas” a um braço ou a uma perna partida… essas, já são raras. Mas, a singularidade, por vezes, pode ser o cartão de visita do Centro Histórico de Coimbra. Mais concretamente do R/C do número 13 do Beco das Canivetas.
Os primeiros passos e o fatídico incêndio
Quando, em 1958, foi fundada pelo reconhecido barbeiro da ‘Baixa’ de Coimbra, pai de José Fernandes, na Rua Adelino Veiga, “por baixo da Farmácia Miranda mesmo ali ao pé da ‘Casa Confiança’, chamava-se ‘Hospital das Bonecas’”, começa por contar o “senhor Fernandes”, como carinhosamente é tratado por quem o conhece. “O meu pai tinha jeito para reparar as bonecas mas, além disso, vendíamos fruta e recordações alusivas a Coimbra. Aliás, éramos três aqui a vender fruta. Naquele tempo cada um vendia cerca de 200 quilos de melão por dia! As meninas estragavam muito as bonecas. Temos, por exemplo, ali aquela boneca que foi oferecida por uma senhora, se fosse noutros tempos restaurava-se. Hoje já não. Hoje em dia a juventude só brinca com telemóveis”. José Fernandes fala com visível saudade dos tempos em que a Rua Adelino Veiga enchia. Conimbricenses ou pessoas apenas de passagem, como era o caso dos jogadores de futebol que vinham disputar jogos com a Académica e passavam por ali para ir ao antigo Hospital visitar os doentes. “Quando vejo naquilo em que esta rua se tornou, fico triste”, conclui.
Em 1965, no dia 15 de junho, aconteceu o fatídico dia da história deste espaço. Um funcionário da Farmácia Miranda, por descuido, ao trabalhar com cetona e uma lamparina deu origem a um incêndio que se propagou e causou elevados prejuízos à família Fernandes. E é apontando para a fotografia a preto e branco própria da época, emoldurada e pendurada no estabelecimento, que José Fernandes descreve esse dia.
“Aqui estou eu com 18 anos, e aqui o senhor Abílio da ‘Casa Confiança’. E este senhor era o meu pai. Os bombeiros estavam aqui porque as bombas de incêndio não estavam ligadas à rede e tiveram de ir buscar água a outro lado. Estiveram ainda alguns minutos a decidir o que fazer. Estas obras na praça do Comércio tinham sido feitas no tempo do Doutor Moura Relvas e estes marcos foram batizados por alguém como “supositórios do Doutor Moura Relvas”. O nosso seguro não era multi risco e a companhia de seguros não pagou. Para reaver algum dinheiro dos prejuízos tínhamos de meter uma acção judicial contra a Farmácia Miranda mas, como éramos muito amigos, não o fizemos. Arranjámos tudo com o nosso dinheiro. Foram mais de cem contos [500 euros] de prejuízo”.
Foi com este incidente que surgiu mais um contratempo. Com as voltas e reviravoltas do seguro ficam a saber que existia um ‘Hospital’ das Bonecas, em Lisboa, com nome registado, obrigando-os a mudar o nome da loja. Por isso, no início de 1966, o espaço passa a chamar-se ‘Casa da Saúde das Bonecas’.
“Não fui eu que
escolhi a profissão, foi a profissão que me escolheu a mim!”
“É aqui que passo os meus dias desde os 14 anos. Hoje tenho 73”. José Fernandes faz desta a sua casa desde tenra idade. Desde os tempos em que saía das aulas e, em vez de brincar, ajudava os pais na loja. Mais tarde, com a reforma do pai aos 68 anos, ficou “sozinho com este barco”.
Em 1969 o espaço ganha novo nome, o terceiro e último até à data, ainda que, já no século XXI, lhe seja acrescentado um “preciosismo”. Mas já lá vamos. Neste ano, simplifica-se então o nome passando a ser apenas ‘Casas das Bonecas’. Além de “bonecas bibelô”, como lhes chama José Fernandes, são muitos os utensílios de cutelaria vendidos neste espaço e vários os serviços que, nalguns casos e à primeira lembrança, parecem extintos. Afiam-se tesouras, por exemplo “o que já não se vê em muito lado! Quando este senhor sair daqui não sei onde irei com as minhas tesouras!”, diz uma cliente que entra entretanto com tesouras para afiar e acaba por comprar também outra nova. “É que o que aqui se vende é de boa qualidade, não é como algumas hoje…que é tudo ‘made in China’!”, completa José Fernandes. Vendem-se facas, canivetes, navalhas de barbear, tesouras dentadas, tesouras de picotar ou ziguezaguear, tesouras de corte, alicates de unhas, alicates de pele, guarda-chuvas, bengalas, bonecas, bússolas, bússolas militares… uma panóplia de produtos que, para quem vê a loja do lado de fora, parecem nem caber no exíguo espaço. As pessoas vão entrando e saindo mas “quem vem tem de valorizar o trabalho que é aqui feito. Eu podia ter um curso superior, mas estudei até à quarta classe e não segui apesar dos meus pais terem possibilidades. Estava motivado para isto e gosto muito daquilo que faço. É uma arte. Tenho muitos clientes de fora de Portugal que gostam do meu serviço, todos os dias aprendo algo novo. Eu faço coisas que, por vezes, até a mim me surpreendem. Não foi a profissão que me escolheu, fui eu que escolhi a profissão”.
A (não) continuidade do negócio
Com a ajuda da esposa vai levando em frente o negócio ainda que o sítio talvez não seja o melhor. Mudou para o beco das Canivetas porque a máquina com que trabalha é grande e precisou de um espaço maior mas, confessa, por vezes tem clientes que têm alguma receio de ir ali. “Estamos sozinhos nesta rua e nem sempre o ‘ambiente’ aqui é o melhor. De vez em quando há rusgas, mas eles [toxicodependentes] andam por aqui na mesma”, desabafa.
Na vitrine lateral ao balcão da loja, sobressai um papel com três nomes: ‘Hospital das Bonecas’, ‘Casa da Saúde das Bonecas’ e ‘Casa das Bonecas 2004 Lda’. Junta-se, portanto, o número 2004 ao nome atual, um pormenor romântico, alusivo ao ano do seu casamento com a mulher que o acompanha diariamente nesta luta. Quando, um dia, deixar esta loja não haverá continuidade. Ninguém vai ficar com a ‘Casa das Bonecas’. “Vou estar aqui até que Deus queira, gosto de comunicar e estar aqui faz parte do meu medicamento. As pessoas vão ao centro comercial e perguntam a um funcionário alguma coisa e ninguém sabe responder. Muitas vezes estamos 10 minutos à espera para nos esclarecerem alguma coisa e é chegar, comprar, pagar e sair. Não se comunica. Eu aqui gosto de falar com os clientes, de aconselhar… enquanto eu for vivo a ‘Casa das Bonecas’ estará aqui. Depois deixará de existir”.